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A Democracia no País dos Sovietes

(Comunicação apresentada na conferência «A Democracia Liberta-se», que teve lugar em Lisboa, no dia 13 de Abril, integrada no ciclo «Lénine e a Democracia», organizado pela Associação Iúri Gagárin e a Biblioteca-Museu República e Resistência).

«Pela primeira vez no mundo, o poder do Estado foi organizado na Rússia de modo que só os operários e camponeses trabalhadores, excluindo os exploradores, constituem organizações de massas, os Sovietes, para os quais é transferido todo o poder estatal. Esta é a causa por que, por mais que os representantes da burguesia de todos os países caluniem a Rússia, a palavra “soviete” não só se tornou compreensível em todo o mundo, mas também popular, querida dos operários e de todos os trabalhadores

«O que é o poder soviético?», V.I. Lénine.

Nesta comunicação defende-se que o sistema político construído após a revolução russa de 1917, que deu origem à União Soviética e inspirou milhões de pessoas por todo o mundo, é a forma de democracia mais avançada que a humanidade já conheceu. Afirma-se ainda que o Estado soviético não caiu por si, mas foi destruído por efeito de uma política que se afastou da prática e dos princípios leninistas. Trata-se de um tema que obviamente extravasa os limites objectivos desta iniciativa e deverá merecer outros desenvolvimentos.

Estado de classe

A 4 de Março de 1919, no I Congresso da Internacional Comunista, em Moscovo, Lénine apresentou 22 teses sobre a democracia burguesa e a ditadura do proletariado (Teses e Relatório Sobre a Democracia Burguesa e a Ditadura do Proletariado, no Tomo 4 das Obras Escolhidas de V. I. Lénine em seis tomos – Edições Progresso, Moscovo, Edições Avante!, Lisboa, 1985). Começou por situar a condenação da ditadura e a defesa da democracia entre os «argumentos ideológico-políticos para defender a dominação dos exploradores», que «a burguesia e os seus agentes nas organizações operárias» procuram a todo o custo, face ao «crescimento do movimento revolucionário do proletariado em todos os países».

Lénine rejeita que se fale de «democracia em geral» e «ditadura em geral», sem definir qual a classe que detém o poder. Tal como «em nenhum país capitalista civilizado existe a “democracia em geral”, existe apenas a democracia burguesa», também na Rússia soviética não se podia falar de «ditadura em geral», mas de «ditadura da classe oprimida, isto é, do proletariado, sobre os opressores e exploradores».

«Nunca nenhuma classe oprimida alcançou a dominação, nem podia alcançar a dominação, sem passar por um período de ditadura, isto é, sem conquistar o poder político e esmagar pela força a resistência mais desesperada, mais raivosa, que não se detém perante nenhum crime, que os exploradores sempre opuseram» – eis uma lição da história que Lénine complementa com uma severa crítica: «Agora, quando o proletariado revolucionário entra em efervescência e em movimento para destruir esta máquina de opressão e para conquistar a ditadura proletária, estes traidores ao socialismo apresentam as coisas como se a burguesia tivesse oferecido aos trabalhadores a “democracia pura”, como se a burguesia tivesse renunciado à resistência e estivesse disposta a submeter-se à maioria dos trabalhadores, como se na república democrática não tivesse havido e não houvesse qualquer máquina de Estado para a repressão do trabalho pelo capital

Depois de recordar que «as formas da democracia se modificaram inevitavelmente ao longo dos séculos (…) à medida que uma classe dominante ia sendo substituída por outra», Lénine considera que «seria o maior absurdo pensar que a revolução mais profunda da história da humanidade, a passagem pela primeira vez no mundo do poder da minoria dos exploradores para a maioria dos explorados, possa verificar-se dentro dos velhos limites da velha democracia burguesa parlamentar, possa verificar-se sem as mais radicais mudanças, sem a criação de novas formas de democracia». E sublinha que «a ditadura do proletariado deve inevitavelmente trazer consigo não só a modificação das formas e das instituições da democracia, falando em geral, mas precisamente uma sua modificação que possibilite um alargamento, nunca visto no mundo, da utilização efectiva da democracia pelos oprimidos do capitalismo, pelas classes trabalhadoras».

Este inédito desafio há-de marcar a diferença que assenta no carácter de classe do Estado, como sintetizou Lénine na 16.ª tese: «A velha democracia, isto é, a democracia burguesa, e o parlamentarismo foram organizados de modo a afastar do aparelho de administração, mais que ninguém, precisamente as massas dos trabalhadores. O Poder Soviético, isto é, a ditadura do proletariado, está organizado, pelo contrário, de modo a aproximar as massas dos trabalhadores do aparelho de administração. Tal é igualmente o objectivo da união dos poderes legislativo e executivo na organização soviética do Estado e da substituição dos círculos eleitorais territoriais pelas unidades de produção, como as fábricas

O poder aos sovietes

Os sovietes (conselhos) de deputados operários e soldados surgiram, como forma de exercício de poder, durante a revolução russa de 1905. Como refere Álvaro Cunhal, n’«A Questão do Estado, Questão Central de cada Revolução» (artigo publicado n’ O Militante N.º 152, de Novembro de 1967, publicado em Fevereiro de 1977 pelas Edições Avante! na colecção Documentos Políticos para a História do PCP), «foram uma criação da classe operária e das massas trabalhadoras no decurso da luta revolucionária». Os sovietes «reapareceram com o triunfo da revolução democráticoburguesa de Fevereiro de 1917 e ganharam tal amplitude que constituíram durante meses, até Julho de 1917, um órgão de poder paralelo ao governo provisório da burguesia». Assinala Álvaro Cunhal que «o mérito de Lénine e do Partido Bolchevique não foi terem “inventado” os sovietes, mas terem sabido descobrir nesses organismos revolucionários criados pelas massas o órgão do poder no Estado proletário». A comprovar como os sovietes foram «a forma de intervenção directa das massas na direcção do Estado», Cunhal refere que, «tomando apenas os primeiros dez anos do poder soviético, cerca de 12 milhões e 500 mil pessoas foram deputados, membros dos comités executivos e delegados a congressos dos sovietes».

Para Álvaro Cunhal, «a Revolução de Outubro mostrou na vida a justeza da teoria leninista do Estado e da Revolução. Nenhum governo teria sido capaz de pôr fim à exploração capitalista, de nacionalizar a indústria, os transportes, os bancos e a terra, de confiscar os latifúndios e entregá-los aos camponeses, de assegurar a igualdade das nações submetidas ao antigo império russo, de assegurar à mulher direitos iguais aos do homem, de encetar e levar a bom termo a obra grandiosa da edificação da sociedade socialista, se não dispusesse de um aparelho do Estado ao serviço dos operários e camponeses. Sem a destruição do antigo Estado (do aparelho da ditadura da burguesia), sem a criação do novo Estado (do aparelho da ditadura do proletariado) em bases amplamente democráticas, sem a participação real das massas na direcção política e económica, não teria sido possível realizar a revolução socialista

A passagem de todo o poder para os Sovietes foi proclamada no II Congresso dos Sovietes de Toda a Rússia. Este «iniciou os seus trabalhos no Smólni, na noite de 25 de Outubro (7 de Novembro), pelas 22.45 horas, quando a insurreição atingia o auge e o poder na capital já tinha passado de facto para as mãos do Soviete de Petrogrado», na sequência da insurreição armada que derrubou o governo provisório. No relato dos acontecimentos, incluído no Breve Curso de História do Partido Comunista da URSS (bolchevique) (edição de Para a História do Socialismo, www.hist-socialismo.net, Agosto de 2010), recorda-se que «os bolcheviques dispunham de uma maioria esmagadora neste congresso» e que a decisão de mencheviques, bundistas e socialistas-revolucionários de direita, que abandonaram o congresso declarando que se recusavam a participar nos seus trabalhos, não foi lamentada, mas até motivo de congratulação, «já que, assim, teria lugar um verdadeiro congresso revolucionário de deputados operários e soldados».

Na noite seguinte, foram aprovados o Decreto sobre a Paz e o Decreto sobre a Terra. As riquezas do subsolo, as florestas e a água foram declaradas propriedade do povo. No Congresso foi constituído o Conselho de Comissários do Povo, primeiro governo soviético, do qual Lénine foi eleito presidente. Mas a passagem do poder para os Sovietes não foi imediata nem simultânea em toda a Rússia, e houve que enfrentar vários inimigos.

Ao mesmo tempo, refere-se na História atrás citada, «era necessário desmantelar e destruir o antigo aparelho de Estado burguês e criar no seu lugar o novo aparelho do Estado Soviético. Era necessário de seguida destruir os resquícios do sistema de castas e do regime de opressão nacional, abolir os privilégios da Igreja, liquidar a imprensa contra-revolucionária e as organizações contra-revolucionárias de todo o género, legais e ilegais, e dissolver a Assembleia Constituinte burguesa. Por último, após a nacionalização da terra, era necessário nacionalizar toda a grande indústria e pôr termo à guerra». E «todas estas medidas foram realizadas no decurso de alguns meses, entre finais de 1917 e meados de 1918».

Em Julho de 1918, no 5.º Congresso dos Sovietes, foi aprovada a primeira Constituição no novo Estado: a República Socialista Federativa Soviética da Rússia. Em Março de 1919, o 8.º Congresso aprovará o Programa do Partido. No projecto apresentado por Lénine, são fundamentadas importantes opções políticas. A propósito da privação de direitos eleitorais, Lénine acentua que ela atinge «apenas aqueles que se obstinam, em oposição às leis fundamentais da República Socialista Soviética, em defender a sua situação de exploradores, em conservar as relações capitalistas», os quais não ultrapassariam então «dois ou três por cento» dos eleitores e serão cada vez menos, com a consolidação do socialismo («Adição à Parte Política do Programa», in A Democracia Socialista Soviética, pág. 131, Edições Progresso, Moscovo, 1980). Lénine admite que «no futuro mais imediato» possa ocorrer «uma situação que permita ao poder estatal proletário escolher outros meios de esmagamento da resistência dos exploradores e implantar o sufrágio universal sem nenhuma restrição». Após a 1.ª Guerra Mundial (1914-1918) e a intervenção estrangeira (1918-1920), a agricultura e a indústria do país dos sovietes estavam em ruínas.

No 10.º Congresso do Partido, em Março de 1921, é decidido deixar o regime de requisições aos camponeses, substituindo-o por um imposto em espécie, inferior, permitindo a comercialização da produção excedente; ao «comunismo de guerra» sucedeu a nova política económica (NEP). Este recuo veio consolidar a aliança de operários e camponeses. Um ano depois, no 11.º Congresso, o recuo foi dado por findo e passou para primeiro plano a «ofensiva económica contra o capital

privado».

A recuperação económica foi rápida. Relativamente a 1920, os indicadores melhoraram em todos os ramos e as condições de vida melhoraram. Mas o ponto de partida era muito baixo e as dificuldades eram muitas.

Base económica para afirmação política

No 14.º Congresso do Partido, em Dezembro de 1925 – já constituída a URSS, em Dezembro de 1922, e sem Lénine, falecido em Janeiro de 1924 – Stáline apresenta o relatório do Comité Central, assinalando o crescimento na agricultura e na indústria, mas colocando o objectivo de transformar a URSS num país industrializado, para garantir a independência económica, a capacidade defensiva e a criação de condições para a vitória do socialismo.

Reequipar fábricas velhas, construir centenas de novas unidades industriais, reorientar os esforços para o desenvolvimento da indústria pesada, criar sectores que não existiam sequer na Rússia tsarista… Para estes monumentais investimentos a URSS não podia contar com empréstimos estrangeiros e recusava o saque de outros povos. Contou com os seus recursos próprios, com os lucros que deixaram de ser arrecadados pelos capitalistas, com os juros poupados a partir da anulação das dívidas do império.

Em três anos os investimentos na indústria quintuplicaram. Diminuiu o peso do sector privado na indústria e no comércio. Em Dezembro de 1927, o 15.º Congresso do Partido decide promover a colectivização da agricultura, combatendo os kulaques e estimulando a organização dos camponeses em cooperativas (kolkhozes). Em Abril de 1929 é aprovado o primeiro plano quinquenal, e é lançado um apelo à ampliação da emulação socialista.

Enquanto rebenta nas potências capitalistas uma crise económica de dimensões ímpares, na URSS estouram todos os recordes de crescimento. Ao fim do primeiro ano do plano quinquenal, é assumido o desafio de o cumprir em apenas quatro anos. Metas ainda mais ambiciosas foram traçadas para o segundo plano quinquenal, no 17.º Congresso, em Janeiro de 1934.

No final de 1937, com nova crise na indústria capitalista mundial, a produção industrial da URSS atinge um nível quatro vezes superior ao de 1929. O movimento stakhanovista alia a emulação com o uso em massa de novas tecnologias de produção. O segundo plano quinquenal é cumprido em quatro anos e três meses. O desenvolvimento cria condições para uma significativa melhoria das condições de vida. Os salários de operários e empregados duplicaram, e aumentaram também as verbas do Estado para fins sociais e culturais. Aos kolkhozes é reconhecido o usufruto perpétuo das terras que cultivam. É erradicada a pobreza nos campos e crescem os rendimentos dos camponeses. Com o ensino geral obrigatório, mais do que triplica o número de alunos nas escolas e quintuplica o número de estudantes no ensino superior, comparando 1914 com 1936-1937.

«A nossa revolução é a única que não só rompeu as grilhetas do capitalismo e deu liberdade ao povo, como, além disso, pôde dar ao povo condições materiais para uma vida próspera», notou Stáline, intervindo na primeira conferência de stakhanovistas da URSS, em Novembro de 1935.

Meses antes, em Fevereiro, o 7.º Congresso dos Sovietes tinha decidido avançar com a alteração da Constituição. Mudada a correlação de forças, a vitória do socialismo tornava possível introduzir o sufrágio universal, igual, directo e secreto. A discussão pública do projecto durou cinco meses e meio. No 8.º Congresso, em Novembro de 1936, a nova Constituição foi aprovada por unanimidade.

Foi conseguido o objectivo de incrementar a actividade política das massas, reforçar o controlo destas sobre os órgãos do poder e aumentar a responsabilidade dos órgãos do poder perante o povo. O Partido Comunista tomou, a partir de Fevereiro de 1937, importantes decisões para reforçar a democracia e preparar-se para as eleições dos deputados ao Soviete Supremo. Foi constituído um bloco eleitoral, com candidatos comunistas e sem partido.

No dia 12 de Dezembro, de um total de 94 milhões de eleitores, 91 milhões exerceram o direito de voto e destes apenas 632 mil se pronunciaram contra os candidatos do bloco de comunistas e sem partido. O triunfo do socialismo foi assim ratificado pelo voto de quase 90 milhões de pessoas.

As potencialidades do Estado socialista e o apoio popular para a concretização dessas potencialidades acabaram por ser determinantes na maior prova que a URSS iria vencer, poucos anos depois: a guerra contra a Alemanha nazi.

Partido e Estado

Na democracia soviética, Partido e Estado são indissociáveis. O papel dirigente do Partido Comunista ficou consagrado na Constituição.

Um professor soviético de Direito Constitucional notou, a este propósito, que «nos estados imperialistas modernos, os partidos políticos são parte integrante do aparelho estatal, pertencendo o papel dirigente aos partidos que defendem a propriedade privada e o respectivo regime político», enquanto «na sociedade socialista, a liderança pertence aos partidos que defendem a propriedade social e a ordem política correspondente». A observação de Mikhail Krutogolov, em 1978, até parece não trazer novidade.

Ainda sem nada inventar, mas com toda a pertinácia, o académico – que também era dirigente da Associação URSS-França e leccionou três anos na Universidade de Paris – nota logo de seguida: «Mas, se os teóricos do comunismo reconhecem abertamente que o partido marxista-leninista dirige a sociedade socialista, os teóricos do capitalismo preferem ocultar a verdadeira situação, procurando apresentar a ditadura da burguesia, ou, mais exactamente, a ditadura da cúpula desta classe, os monopolistas, como modelo da chamada “democracia pura, que está acima de classes”» (Krutogolov, M. A., Palestras sobre a Democracia Soviética, 1978, Edições Progresso, Moscovo).

Mas, em 1990 – já ia muito adiantado o processo contra-revolucionário que se tornou conhecido como perestroika e que começou por se anunciar como pretendendo o reforço do socialismo –, foi precisamente pelo Comité Central do Partido Comunista da URSS que foi proposta a eliminação do artigo 6.º da Constituição (o artigo sobre o papel dirigente do Partido). Esta era uma reivindicação da primeira força organizada de oposição parlamentar que surgiu na União Soviética, o Grupo Inter-regional de Deputados, formalizado no I Congresso dos Deputados do Povo e cujos objectivos foram anunciados em Setembro de 1989. A proposta não passou, por escassos votos, no Soviete Supremo, e não foi apresentada em Dezembro desse ano no II Congresso de Deputados do Povo. Sê-loia meses depois, no III Congresso, juntamente com um pacote de reformas em que entrou a criação do cargo de Presidente da URSS.

Como repara o cientista e filósofo Serguei Kara-Murza na sua extensa obra A Civilização Soviética (publicada em russo em 2002 e da qual está disponível, desde 2004, uma recensão em português, na biblioteca online «Para a História do Socialismo»), foi assim eliminado o fundamento legal em que assentava o papel dirigente do PCUS, abatendo-se o sustentáculo de todo o sistema político estatal. O presidente da URSS (que era também secretário-geral do PCUS) deixava de estar obrigado a prestar contas ao Partido, ou seja, os órgãos dirigentes do Partido ficavam arredados de qualquer participação na tomada de decisões.

O Presidente da URSS ficou acima do Presidium do Soviete Supremo, até aí o órgão colegial de chefia do Estado. O Presidente Mikhail Gorbatchov passou a deter poderes que até aí nenhum líder soviético acumulara, nem em tempo de guerra. Mas as transformações na organização central do Estado tinham começado com a revisão constitucional de 1988, que mudou a estrutura dos órgãos supremos de poder e o sistema eleitoral.

A perestroika tinha sido lançada uns anos antes, em Abril de 1985, após a eleição de Gorbatchov para secretário-geral do PCUS. «Nessa altura ainda não era possível anunciar ao povo as coisas para as quais o povo ainda não estava preparado» – admitiu, em Janeiro de 1993, numa entrevista à Spiegel. Seis anos e meio depois, numa conferência em Ancara, na Universidade Técnica do Médio Oriente, Gorbatchov foi ainda mais claro: «O objectivo da minha vida era a eliminação do comunismo, uma ditadura insuportável sobre o povo. A minha mulher, que tinha compreendido esta necessidade mesmo antes de mim, apoioume inteiramente. Foi justamente para o alcance deste objectivo que me servi da minha posição no partido e no país

Ao contrário do que por vezes se pensa, a democracia soviética não sucumbiu facilmente aos planos e actos dos que ocuparam cargos da maior responsabilidade, não se rendeu sem resistência às campanhas ideológicas lançadas sob a capa da glasnost (transparência).

N’A Civilização Soviética, Kara-Murza data de Junho de 1990 o primeiro acto legal do processo de dissolução da URSS: o I Congresso dos Deputados do Povo da Rússia aprovou a divisão da propriedade social e o primado das leis da república sobre as leis da URSS. A seguir, passaram para a Federação Russa as empresas que estavam sob tutela da União. O sistema fiscal introduzido com o orçamento da Rússia para 1991 deixou a União totalmente privada de receitas. O mesmo começaram a fazer as restantes repúblicas.

Mesmo assim, o IV Congresso dos Deputados do Povo da URSS decidiu, por votação nominal, preservar o Estado Federal e manter a designação de União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

Foi por iniciativa de Gorbatchov que, na Primavera de 1991, se realizou um referendo sobre a preservação da URSS. As autoridades da Letónia, Lituânia, Estónia, Geórgia, Moldávia e Arménia recusaram-se a colaborar na organização do referendo. Não obstante, nele participaram 80 por cento dos eleitores, que deram uma resposta clara: 74,4 por cento votaram a favor da conservação da URSS. Como se sabe, os políticos que tinham tomado o poder afirmando-se os mais democratas de todos ignoraram pura e simplesmente o resultado do referendo.

Os avanços na restauração do capitalismo representaram graves recuos na democracia. Mas, por aquilo que vamos sabendo, ainda se travam hoje batalhas em defesa do socialismo e da democracia na Rússia e demais países que constituíram a União Soviética. Por aquilo que conhecemos de Portugal, sabemos que ainda hoje não estão definitivamente perdidas importantes conquistas alcançadas no breve mas intenso período que se seguiu à revolução de Abril.

«Já houve dias em que o nosso país esteve numa situação ainda mais difícil. Recordem o ano de 1918, quando comemorávamos o primeiro aniversário da revolução de Outubro. Três quartos do nosso país estavam então nas mãos dos invasores estrangeiros.» «Hoje a situação do nosso país é bem melhor do que há 23 anos.»

Esta breve citação é de um discurso pronunciado na Praça Vermelha, em Moscovo, no dia 7 de Novembro de 1941. As tropas nazis estavam a poucas dezenas de quilómetros da capital soviética. Dali, da parada que celebrava o aniversário da revolução, com as palavras de Stáline a ecoarem sobre o ruído de camiões, tanques e botas, as tropas seguiam directamente para a frente de combate.

E hoje? Não poderemos admitir, da mesma forma, que a democracia soviética e o socialismo já conheceram dias piores do que aqueles que estamos a viver? Que as tropas soviéticas entraram vitoriosas em Berlim já todos sabemos. O que vai suceder com a democracia soviética e o socialismo está a ser decidido nas batalhas de todos os dias.

Domingos Mealha, Publicado no jornal Avante!, n.os 1953 e 1954, de 5 e 12 de Maio de 2011.